A Matança

Os fragmentos da História que desvendam parte das atividades econômicas da América Portuguesa são, todavia, insuficientes para entendermos a magnitude das alterações ambientais imediatas que a colonização européia causou à zona costeira do Brasil, do Nordeste ao Sul. Entretanto, um diligente e memorável trabalho da Professora Miriam Ellis, publicado na década de 60, resgatou grande parte da memória da atividade de caça à baleia no Brasil-Colônia, permitindo que se componha um quadro do que foi o massacre dos grandes cetáceos – e principalmente da então abundante baleia franca – nos primórdios da epopéia nacional. Já em 1587, Gabriel Soares de Almeida sugeria à Corte a vinda de baleeiros de Biscaia (especializados na captura das francas boreais) ao Brasil, dizendo delas que na Bahia (Salvador) “em nenhuma parte entram tantas como n’ella, onde residem seis mezes do anno e mais, de que se fará tanta graxa que não haja embarcações que a possam trazer à Hespanha”. Tal relato é consistente com o de Frei Vicente do Salvador, em crônicas que este fez da Colônia do Brasil, nas quais destacava a enorme abundância de baleias nas baías e enseadas da costa brasileira.

O maior número de baleias ocorria, segundo tais relatos, de maio a junho; muito embora admita-se, principalmente para a costa Sudeste e Nordeste, que tenha havido expressiva captura de baleias jubarte, parece-nos, sem sombra de dúvida, que a imensa maioria das capturas centrou-se na costeira e vulnerável baleia franca, que de há muito já recebia este nome, ou o seu correspondente em Inglês right whale, por ser a baleia mais “certa” ou fácil de ser morta.

A caça à baleia no Brasil-Colônia permaneceu essencialmente costeira, estendendo-se da Bahia para o Sul até Santa Catarina. No século XVIII, entre 1740 e 1742, estabeleceu-se nas proximidades da Ilha de Santa Catarina a primeira Armação baleeira, denominada Nossa Senhora da Piedade (hoje no Município de Celso Ramos). Seguiu-se a Armação da Lagoinha, em 1772, hoje praia da Armação em Florianópolis; ao Norte, a Armação de Itapocoróia, na região de Piçarras/Penha em 1778; a da Ilha da Graça em 1807, próximo a São Francisco do Sul; e ao Sul, a de Garopaba, erguida entre 1793 e 1795 e a estação baleeira mais austral do Brasil em todos os tempos, a de Imbituba, em 1796. O consumo da carne nunca foi o objetivo das capturas de baleias nas Armações da Costa Sul do Brasil; antes, aproveitava-se a camada de gordura, que nas baleias francas era particularmente espessa, para a produção de óleo destinado à iluminação (principal uso até a primeira metade do século XIX), lubrificação e fabricação de argamassa utilizada em igrejas e fortalezas como as que até hoje resistem ao tempo no litoral catarinense. Secundariamente, as “barbatanas” – o aparelho de cerdas filtradoras de alimento existente na boca das baleias francas – era vendido para à fabricação de espartilhos.

Estação baleeira de Imbituba, última a operar no sul do Brasil.
Caça à baleia franca - pintura de Oswald Brierly datada de 1847.

A técnica da caça praticada nestas Armações entre os séculos XVIII e princípios do século XX praticamente não evoluiu. A perseguição às baleias era feita em lanchas (“baleeiras”, cujo formato até hoje é comum aos barcos de pesca artesanal catarinenses) impulsionadas a remo e a vela. Os animais eram arpoados com um arpão rudimentar de ferro batido com farpas e uma haste de madeira, preso à lancha por um cabo. Após arpoada, era comum que a baleia arrastasse a lancha por várias horas, antes de, exausta, deixar-se aproximar pela embarcação, da qual se desferiam golpes hediondos com uma lança de ferro de uns 2 metros de comprimento, que sangrava mortalmente o animal.

Era comum o arpoamento do filhote antes da baleia adulta, para atrair esta; ao permanecer junto ao baleote, amparando-o, a mãe era então golpeada com a lança por repetidas vezes, sem contudo abandonar sua cria, morrendo ao fim lentamente pelo sangramento das feridas sucessivas. Um espetáculo que, mesmo visto no distanciamento do contexto histórico, não deixa de evocar a indizível crueldade que caracterizava a caça à baleia.

José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil, foi sem sombra de dúvida a primeira pessoa no planeta a insurgir-se, já em 1790, contra a matança desenfreada e criminosa das baleias, e o primeiro também a condenar o massacre das baleias francas na costa brasileira, escandalizando-se com os seus métodos de puro desperdício. Em contundente Memória publicada em Lisboa naquele ano, nos Anais da Academia Real das Sciencias, José Bonifácio denunciava: “Deve certo merecer tambem grande contemplaçaõ a perniciosa pratica de matarem os baleotes de mamma, para assim harpoarem as mãis com maior facilidade. Tem estas tanto amor aos seus filhinhos, que quasi sempre os trazem entre as barbatanas para lhes darem leite; e se por ventura lhos mataõ, não desamparaõ o lugar, sem deixar igualmente a vida na ponta dos farpões: he seu amor tamanho, que podendo demorar-se no fundo da agua por mais de meia hora sem vir a respirar assima, e escapar assim ao perigo, que as ameaça, folgaõ antes expôr a vida para salvarem a dos filhinhos, que não podem estar sem respirar por tanto tempo. Esta ternura das mãis facilita sem duvida a pesca (…)” He fora detoda a duvida, que matando-se os baleotes de mamma vem a deminuir-se a geração futura; pois que as baleas por uma dessas sabias leis da economia geral da Natureza só párem dous em dous annos hum unico filho(a) ; morto o qual perecem com elle todos os seus descendentes (…) Os relatos coincidentes sobre o comportamento de não abandonar os filhotes arpoados ou feridos, observado nas matanças de Santa Catarina, são corroborados por relatos de caça da espécie em outras áreas de reprodução, como ocorreu notadamente na Nova Zelândia, onde igualmente os filhotes eram arpoados primeiro. Com a baleia franca boreal (Eubalaena glacialis), idênticos eventos foram registrados por baleeiros da baía de San Sebastián, no Norte da Espanha.

As baleias assim massacradas produziam em média 16 pipas de óleo por animal, ou seja, cerca de 6.800 litros. As rendas obtidas na caça à baleia em Santa Catarina no período colonial, da qual os contratos com a Coroa garantiam vultosos retornos para o tesouro real, foram fundamentais para a consolidação das povoações da costa catarinense, uma vez que complementavam verbas para pagamento de pessoal civil e militar (e religioso!), construção de fortalezas, aquisição de mantimentos e outras necessidades. Tanto os abusos do extermínio de mães e filhotes na costa brasileira como a crescente matança nos “Bancos do Brasil” e outros locais do Atlântico Sul por frotas americanas e européias (vide adiante) fizeram com que já em princípios do século XIX os números de baleias francas capturadas despencassem, colocando a espécie já à beira da extinção e as Armações catarinenses, à beira da falência.

Fragmentos da Caça no Restante do Atlântico Sul

O prolongado massacre das baleias francas em águas brasileiras seria por si só um terrível agravo à sobrevivência da espécie no Atlântico Sul; entretanto, a matança costeira e rudimentar não era mais do que um componente do quadro de perseguição continuada da espécie que a vitimou nos mares austrais nos últimos quatro séculos. Somadas, todas essas capturas empurraram a baleia franca para a beira do abismo da extinção. A dramática contração da área de concentração reprodutiva da baleia franca na costa brasileira possui um paralelo documentado na costa sul-africana, onde a atividade baleeira foi exterminando grupos reprodutivos sucessivamente. Supõe-se que a primeira caça à baleia empreendida por europeus na África do Sul tenha ocorrido em 1497, quando Paulo da Gama, irmão de Vasco (que no ano seguinte abriria a rota marítima das Índias), arpoou uma baleia (franca?) em Saint Helena Bay. Somente em 1652, entretanto, com o estabelecimento de uma estação holandesa em Table Bay, houve notícia formal de milhares de baleias, certamente francas, em Table Bay, Saldanha Bay e águas adjacentes. Muito embora houvesse interesse da nova colônia holandesa na explotação dos cetáceos, a matança industrial de baleias francas iniciou somente em 1792 em Table Bay. Competiam com a operação costeira, não obstante, e já no final do século XVIII, as frotas de navios baleeiros norte-americanos, ingleses e franceses, impulsionados pelo desaparecimento, nas águas do Atlântico Norte, da baleia franca boreal. Supõe-se que esses navios matavam, ao longo de um mesmo ano, as baleias francas nos Bancos do Brasil e na costa sul-africana, tendo portanto um seriíssimo impacto na população desta espécie no contexto do Atlântico Sul. Em 1790 apenas, baleeiros americanos mataram 400 baleias francas em St. Helena Bay, e entre 1791 e 1792 a captura chegou a aproximadamente 1200 baleias. O massacre, sem a imposição de quaisquer limites, perduraria até o final do século XIX, quando a indústria baleeira sul-africana baseada na captura de baleias francas entrou em irreversível colapso. Mesmo assim, a matança não estava encerrada. Entre 1900 e 1914 diversas estações baleeiras norueguesas foram instaladas na costa africana, e apesar de vitimarem principalmente baleias jubartes, certamente as baleias francas remanescentes eram igualmente mortas. Na década de 1920, entretanto, os baleeiros já haviam concentrado praticamente todo o seu esforço sobre espécies de grandes rorquais, como a baleia azul (Balaenoptera musculus) e a fin (B. physalus). Em 1937, com a ratificação pelo governo sul-africano da Convenção de Genebra sobre a regulamentação da caça à baleia, a matança de baleias francas em águas sul-africanas deveria ter cessado; não obstante, nenhuma norma nacional obrigatória foi adotada pelo governo sul-africano nesse sentido até 1940, e eventos de captura de baleias francas foram reportados em Durban e Donkergat em 1935, 1937, 1951, 1953 e um último animal morto por engano (?) em 1963. Em 1775 o capitão norte-americano Uriah Bunker, comandando o baleeiro Amazon, descobriu a abundância de baleias francas nos “Bancos do Brasil”, cerca de 500 milhas ao largo da nossa costa, iniciando uma corrida para a matança no Atlântico Sul. Mas em 1830 o número de baleias francas mortas ali já havia declinado tanto que a área foi abandonada pelos baleeiros norte-americanos e franceses, que passaram a navegar então para o Pacífico à procura de novas oportunidades para o extermínio sistemático dos grandes cetáceos.

Após um breve período de inatividade, no início do século XX as povoações de “Lagoinha” (praia da Armação, Florianópolis), Garopaba e Imbituba retomaram a matança de forma rudimentar e esporádica, as duas primeiras até a década de 1950 e a de Imbituba, surpreendentemente, até 1973, em total violação dos acordos internacionais que desde a década de 30 conferiam proteção integral às baleias francas. Nos primeiros anos de atividade do Projeto Baleia Franca, foi possível reunir informações capazes de compor um quadro da atividade baleeira catarinense em seus estertores finais.

A captura desenvolvida até o princípio da década de 1950 manteve essencialmente as características rudimentares da prática baleeira das Armações, em que arpões manuais eram utilizados e o animal arpoado levava muitas horas até sucumbir. Para reduzir o esforço de captura, utilizava-se um artefato denominado bombilança – uma comprida lança com cabo de madeira na qual se fixava dinamite, e que era cravado nas costas da baleia simultaneamente ao arpão principal, preso à baleeira por uma comprida corda. Depoimentos recolhidos na região de Imbituba pelo historiador Manoel de Oliveira Martins dão conta de que o impacto da derradeira estação baleeira ali localizada estendia-se por grande parte do litoral Centro-Norte de Santa Catarina, de vez que os caçadores iam a grandes distâncias ao longo da costa para buscar e matar as já pouquíssimas baleias francas que ainda apareciam.

Em 1952 foi introduzido na técnica de captura dos baleeiros de Imbituba o uso do canhão-arpão, montado na proa da baleeira e que aumentava a eficiência da captura, levando a um pico de eficiência em 1957 com a matança de 10 animais, das quais duas perdidas no mar. Por esta época, a estação baleeira era um galpão de 360 metros quadrados localizado na praia do Porto, e que teve como último operador a Sociedade Indústria de Produtos de Pesca Ltda.; ainda restam destas instalações os tanques de óleo e fragmentos das ruínas, Patrimônio Histórico tombado em 1998 pela Prefeitura Municipal de Imbituba e que constitui memória da última estação baleeira do Sul do Brasil.

Entre 1954 e 1963, segundo estatísticas oficiais das autoridades pesqueiras de então, foram mortas cerca de 30 baleias francas na região com capturas anuais entre 3 e 5 animais; entre 1964 e 1973 outras 15 foram mortas. Estas estatísticas podem ser muito inferiores à captura real, segundo depoimentos recolhidos entre antigos caçadores de baleias catarinenses e que levam a uma estimativa de aproximadamente 350 baleias francas mortas entre 1950 e 1973. Em 1973 a captura de um animal medindo cerca de 14 metros de comprimento assinalou o fim da indústria baleeira catarinense para todo o sempre. A partir da captura da última baleia franca em Santa Catarina, a espécie mergulhou num absoluto limbo, sendo por muitos considerada extinta em águas brasileiras. Relatos de aparecimento de animais encalhados posteriores a essa data, no final da década de 70, eram considerados eventos isolados e “não confirmados” pela comunidade científica e não se reconhecia, então, que pudesse haver ainda uma população “brasileira” sobrevivente de baleias francas.

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